Quando há uma percentagem elevada da população acima do limiar da pobreza, quando a insegurança alimentar é de pelo menos 10%, quando não se encontram casas para habitar acessíveis aos salários médios nos grandes centros e nas áreas metropolitanas e quando o Serviço Nacional de Saúde (SNS) não cobre toda a população em termos suficientes, a sociedade está em sofrimento social. As grandes empresas, as que mais facilmente podiam aumentar os baixos salários, limitam-se a aumentar os seus lucros, alimentando uma inflação que depois a presidente do Banco Central Europeu (BCE), Christine Lagarde, vem atribuir erradamente aos montantes dos salários e dos apoios sociais.
Quando se sabe que entre um quinto e um quarto da população está em situação de pobreza, com um índice de desemprego de cerca de 6%, estamos a falar de trabalhadores pobres, que vivem em condições precárias, acumulam duas ou três gerações na mesma habitação, têm dificuldades em pagar a renda ou o empréstimo ao banco a crescentes taxas de juro, são ameaçados de despejo pelas lucrativas instituições bancárias, atrasam-se a pagar as contas de gás e electricidade e não sonham em fazer férias fora de casa. Aliás, sonham… Para onde canalizarão a revolta que sentem?
Perante este quadro social, em que o SNS precisa é de investimento público para reforçar os seus profissionais e melhorar a sua organização, para garantir cuidados de qualidade e acesso universal aos utentes, eis que o presidente do Partido Social Democrata (PSD), Luís Montenegro, decide, no início de Julho, apresentar uma proposta para a Saúde (1). Seria difícil ser mais desconexa e contraditória. Primeiro que tudo, avança com a solução de o SNS comprar serviços clínicos a instituições privadas para acabar com a falta de médicos de família e respectivas consultas, com as listas de espera de cirurgias, com as dificuldades nas urgências hospitalares e com a espera por consultas da especialidade. E culmina propondo que todos os portugueses possam ter ADSE. Esta proposta não é séria, vejamos porquê.
Pela mesma altura, por sinal, Óscar Gaspar, presidente da Associação Portuguesa de Hospitalização Privada, publicou um artigo em que homenageia Beveridge e a sua lei de criação do National Health Service inglês, em 1948, com forte apoio popular e dos profissionais de saúde (2). Explica a diferença entre o sistema bismarckiano e o beveridgiano. O primeiro assenta no seguro obrigatório e proporcional descontado nos salários. É um seguro público, como é praticado na Suíça e na Holanda (o Obamacare foi proposto nos mesmos moldes). Cada individuo pode depois pagar extras para ir além dos plafons públicos obrigatórios. Este modelo permite consultar serviços privados. Quanto aos serviços baseados no modelo Beveridge, tal como os dos países nórdicos e o português desde a Lei 56/79, desenhada por António Arnaut, leva à constituição de um serviço público, universal, na base de um orçamento que provém do Orçamento Geral do Estado.
Ora, Luís Montenegro misturou as duas concepções. Em metade da proposta, sugere que o Estado vá buscar recursos públicos ao orçamento do SNS para pagar serviços clínicos privados; na outra metade propõe qualquer coisa como um seguro público obrigatório na base da ADSE. Esta é de facto um seguro semiprivado, para o qual descontam opcionalmente os funcionários públicos. Seria nem mais nem menos do que acabar com esta «caixa» e os seus depositantes, acabar com a Lei do SNS e criar… o quê?… Já Óscar Gaspar, considera de grande mérito histórico a estrutura da lei Beveridge, mas acha que nos tempos actuais devemos encontrar mais soluções. Note-se que, actualmente, os países que a seguem, e que não se deixaram infiltrar por privados, continuam a satisfazer a população.
Em Portugal, a responsabilidade pelas deficiências e degradações do SNS deve-se à forma como é feita a governação. Quando falamos em Orçamento da Saúde, estamos a falar de números imaginários: só cerca de metade é executado, apesar de termos um dos mais baixos orçamentos da Saúde na União Europeia em relação ao produto interno bruto (PIB). E não se pense que uma parte desse orçamento executado não é exactamente para pagar serviços privados, para além dos que naturalmente o seriam, como equipamentos e produtos farmacêuticos. O SNS paga a privados meios auxiliares de diagnóstico (análises, endoscopias, radiologia, hemodiálise, fisioterapia), que em 2022 correspondeu a 776 087 748 euros, cerca do dobro de 2012. O preço de cada requisição encareceu muito, tendo passado de uma média de 20 euros em 2014 para 36 euros em 2022. A inflação dos custos é evidente e independente da inflação geral actual, os serviços privados fazem-se valer. Isto explica também que os serviços bismarckianos sejam comparativamente os mais caros. E ainda mais caros os que, comparativamente ao seguro público bismarckiano, funcionem na base de seguros privados.
Esta poupança gera dívidas e, portanto, dificuldade de discutir preços com fornecedores. Tem gerado também a perda de camas de internamento nos hospitais públicos, que em 2020 tinham menos 3350 camas relativamente a 2001, com a ideia de combater o hospitalocentrismo, para desenvolver o atendimento nos Cuidados Primários. Esta última seria uma boa ideia se, entretanto, estes tivessem sido desenvolvidos com a possibilidade de receber doentes agudos ou subagudos, com centros integrados de exames que dispensassem a ida às urgências hospitalares (análises, ecografias, radiologia de leitura de consulta à distância, como hoje já se faz, em poucos casos, em Unidades Locais de Saúde, que juntam hospital e agrupamento de centros de saúde). Libertando orçamento, poder-se-ia também evitar a sangria de médicos jovens especialistas, 13 000 dos quais, com menos de 65 anos, já em 2019 estavam fora do SNS. A questão do vencimento dos médicos pode ser uma questão sindical, mas erra quem a olhar apenas como tal. Lembre-se que não há desemprego médico e que a oferta de trabalho privada é boa e pode não implicar urgências para os especialistas.
O SNS gasta milhões de euros a comprar serviços aos privados que podia não comprar, se usasse, na maior parte dos casos, meios próprios — já existentes ou de que se dotasse, mobilizando os milhões de euros da metade do Orçamento da Saúde que fica por executar. A fronteira que nunca foi transposta é a da compra de consultas e de internamentos às grandes instituições privadas. Na verdade, estas são sustentadas pela ADSE, porque os seguros privados e os «ricos» não chegam para as alimentar. Convém lembrar que muitos dos referidos meios auxiliares de diagnóstico são executados por serviços clínicos pertencentes às mesmas redes empresariais das grandes instituições hospitalares privadas. Transposta esta fronteira fariam o pleno, como tentaram durante a pandemia.
No meio disto o ministro da Saúde, Manuel Pizarro, é apenas o que aceitou dar a cara. Qualquer contrato ou base salarial depende directamente do ministro das Finanças e para gerir lá está, em pleno espírito empresarial, um «CEO da Saúde» que concentra todas as decisões organizacionais, com um estatuto que esmagou todas as direcções intermédias e está paralisado.
Este panorama de sofrimento social é bem um retrato de um país e uma União Europeia cheios de contradições. Em 1974, o movimento revolucionário português fez-se em contraciclo com um neoliberalismo que, logo na década de 1980, começaria a varrer serviços públicos e conquistas sociais. Até quando?
* Isabel do Carmo in "Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) - Ago.2023
Notas:
(1) «Saúde: Agenda mobilizadora 2030-2040», PSD, 3 de Julho de 2023.
(2) «Nos 75 anos do NHS: de Beveridge à Saúde de que precisamos», Público, 5 de Julho de 2023.
IMAGEM: Cartoon de Pedro Penilo